segunda-feira, 11 de abril de 2011

a Gabriela tinha o cabelo preto muito escorrido. os olhos eram esticados sobre a horizontal o que lhe dava um ar ainda mais oriental. usava sempre calças muito justas e sentava-se de costas para quem quer fosse. era intensamente excitante e não recusava uma queca durante a tarde.

domingo, 21 de novembro de 2010

teria sido melhor ter-me posto no canto destinado ao balde e à vassoura onde todas as mãos que me interessavam iam ter a horas certas e sem faltas. não teria sido pior ter-me vendido ao desbarato na feira dos desgastados a fingirem que são clássicos e ser arrumado numa prateleira do móvel da sala onde as visitas só entram uma vez por ano. por uma vez não teria havido traições nem prendas por desembrulhar. as roupas mornas pousadas no aquecedor eram sempre ideias rejeitadas até aos primeiros cheiros do tecido esturricado. e quem sabe se para ver a língua pegar fogo não teriam sido os peitos postos a arder.



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quinta-feira, 18 de novembro de 2010

depois de o sol ter estado pousado mais tempo do que o previsto rasgou-se o saco do açúcar no tombo que me levantou violentamente do chão sem que eu desse por isso. os vivas à descarada supreenderam-me de tal maneira que eu nem uma nem duas. o ego chegava a horas inconvenientes para a celebração do rei morto rei posto que mais certo era sempre afinal quando e por tempo indeterminado. nas doutrinas caducadas entre o título e a conclusão pairavam boas-vontades manhas e afinidades. nos baldes de água fria estendiam-se arrepios sobre pele de galinha e lavavam-se terraços para apregoar. na eira já se espalhavam as espigas de milho e as canas ainda por apanhar.





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domingo, 14 de novembro de 2010

as gotas escorregavam sempre que se tornavam suficientemente pesadas para se aguentarem a si próprias como um suicídio desalmado. não cabendo futilidades nos desvios permanentes os passos tornavam-se mais convencidos de si mesmos e menos atentos ao calcanhar de aquiles muito dado à repetência. serviam-se castanhas à mesa de quatro pernas sem que às cadeiras lhe coubessem uma só para cada. nem uma. o cego de pé via mais longe.





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sexta-feira, 12 de novembro de 2010

regateada num ticket de fila de espera angustiada que esticava ou encolhia de acordo com a porta que ora se abria ora se enraivecia aspirava a mais do que aquilo que lhe cabia na mão e sobravam dedos para segurar a ponta do cigarro cinza mais do que ardida mais valia comê-la e ao chão onde se misturava a semear rancores esfumaçados entretanto purificados. as quatro fotografias penduradas olhavam pasmadas umas para as outras a acumular dívidas de silêncio.




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quinta-feira, 11 de novembro de 2010

do poleiro as codornizes balbuciavam termos imperceptíveis que flutuavam como pedaços de cinza levados na brisa pousada na carruagem atrelada aos sonhos dos outros. esquecida no parapeito uma plateia de mirones armados em cicerones não enganavam a esteira estendida no tapete da indignação. forjada numa estreita maldição entre o cio e a falta de pio aquela estirpe pegajosa e rastejante de línguas preponderantes encontrava-me na sola dos pés e desaparecia nas fendas da caducidade individual. era tudo à meia dose e nada que não água a gelar nos canos.




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quarta-feira, 10 de novembro de 2010

posta ao lume a cafeteira haveria de transportar os arranhões da garganta para perto de uma âncora a ser lançada com os duetos e falsetes desviados para uma realidade imunda. uma chave de temperos orientais a azucrinar-me a cabeça haveria de se partir antes do buraco da fechadura que afinal estroncada valia tanto como bufar para o lado que está o vento. não sacudia os pés no tapete à entrada duma risada sem nexo nem permitia o sexo de postigos abertos. as cortinas quando abanavam já tinham ficado sem as janelas.




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terça-feira, 9 de novembro de 2010

sacrificada a chocolataria deu-se como provado o acto da vigarice ao longo da avenida de cremes e trejeitos matrimoniais. o toca e foge foi banido das ruas e vielas e as mãos dadas de dedos entrelaçados proibidas até novas ordens. era muito mais do que desolador. era aterrador ao ponto das noites se tornarem mais claras do que as tardes em mar alto. entre ameaças de corpos tomados e promessas de corpos oferecidos o passo curto a saber que chega mais longe do que o exílio de uma novidade.




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segunda-feira, 8 de novembro de 2010

era bom naquilo que fazia e ainda melhor naquilo que parecia. o domínio de uma consciência irresponsável sobre um pântano de aristocratas patéticos não demovia o apetite de conturbados episódios de joelhos em cima das mesas a arremessar despesas de envio e a exigir língua detalhada na resposta. houve sempre quem dissesse que o sexo indiferenciado era um mal menor como eu a ignorar ignorantes coitados coitado de mim pior do que eles indiferenciados. era bom no que  fazia e coitado de mim porque coitado de mim para comigo com ou sem espelho com ou sem marcas no corpo com ou sem razões ridículas estapafúrdias e outras merdas que tais.




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domingo, 7 de novembro de 2010

na lavandaria a roupa acumulava-se para além do cesto de vime. as cores já magras não conseguiam tingir os baldes de água na corrente do tempo. o cheiro da humidade insistia numa raiva envelhecida antes mais perpétua do que agora tão ténue. na lavandaria acumulavam-se cheiros e engelhas como migalhas de refeições descuidadas. no meio das migalhas escondia-se uma verdade cada vez mais inverosímil. fechei a porta pelo lado de fora sem me despedir das engelhas e dos cheiros.





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sábado, 6 de novembro de 2010

pouco dada a escurecer uma blusa de intimidade na manhã rompeu os dias de descanso do senhor das ideias pouco claras. a familiaridade com os parentes era notória e os rascunhos eram tudo menos explícitos. interessava-me pouco a intensidade do que me contavam ali. consumia mas não me prendia ao arcaboiço do argumento que ninguém queria ouvir. o senhor das ideias pouco claras ouvia mal e respirava pior.




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quinta-feira, 4 de novembro de 2010

não era coisa que se pudesse dizer ao ouvido. chamaram-me da varanda de cima quando eu estava a descalçar os sapatos do dia. era já noite e havia fumos de nevoeiro com vontade de adensar. tremeu-me a voz a responder e senti o corpo tenso com o disparo do batimento cardíaco. sentei-me e respirei várias vezes. cada vez mais devagar. era já noite e os sapatos já não calçados arrefeciam no canto da emergência de não sair do sítio. não era coisa para se dizer ao ouvido. havia que berrar alto que o menino tinha nascido e de boa saúde. não me lembro de ter ficado viúvo antes de me chamarem assassino. da varanda de cima veio um tabuleiro de crepes de amêndoa acabados de fazer e um alarme cheio de intenção. o menino afinal não tem cadastro mas os olhos postos em quem espreita.





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terça-feira, 2 de novembro de 2010

reconheci à primeira vista os brincos coloridos desenhados numa fantasia de país tropical. a Helena não passava de um domingo à noite de collants rasgados no banco de trás. surpreendeu-me o encontro inesperado e as rugas por baixo dos olhos e em redor da boca. contou-me das viagens forçadas por países asiáticos e quis saber do meu jantar daí a bocado. escolhemos um sítio quente numa rua estreita com candeeiros presos em fios muito esticados que atravessavam a rua de um lado ao outro como que a prender os prédios num frente a frente embaraçoso. parecia que se os cabos se partissem os prédios se afastariam e a rua deixaria de ser estreita. falou-me da custódia perdida do filho que não sabe quem é o pai e do quarto abafado durante mais de um ano com horas muito mais longas do que noutro ano qualquer. falou-me dos buracos negros onde aterravam as viagens a bordo de ressacas movidas a explosões nucleares por todo o corpo e da morfina a chegar aos dedos dos pés. ouvi tudo em silêncio a pensar porque razão os fios aguentam prédios monstruosos e se revelam incapazes de prender os laços finos da ternura.



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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

no sítio onde antes teimavam árvores enormes estavam agora entupidas contra a vontade pedras marteladas contra males que ficaram enterrados nos escombros das raízes de todos os medos. era estranho passar agora por ali. a sensação de um cenário incompleto começava no meu corpo dava a volta ao quarteirão e acabava no meu imaginário segundo corpo que não caminhava senão com o meu pensamento. aquela possibilidade de esticar os braços do meu pensamento feito corpo para lá do sítio onde as árvores me mantinham separado do que eu não conhecia deixava-me desconfortável e com vontade de apressar o passo. lá além havia mais gente pouco disponível para reparos prolongados. mais pessoas como nós deste lado que já não fazia sentido.




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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

tinha mudado para ali há pouco tempo. para um sítio onde nunca tinha estado e onde não morava ninguém que eu tivesse já conhecido. era uma vida nova. sem nada. nada para além do básico para sobreviver com o mínimo de dignidade. não tinha rotinas de coisas nem de pessoas. o que de princípio me causava agitação viria a ser a causa de uma leveza inédita. e por mais tempo que ali estivesse isso não iria mudar porque tudo se alterava de um dia para o outro. no fundo todos ali eram desprovidos de rotinas de coisas e de pessoas. não havia nada para perder. era a libertação plena.




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domingo, 17 de outubro de 2010

conheci o Luc. era um vizinho ocasional. gostava como eu de andar a pé à noite. tinha um bigode fino e usava sempre suspensórios que lhe puxavam as calças demasiado para cima. dizia-lhe quando caminhávamos que até prova em contrário todas as pessoas nos queriam bem. ele retorquia que até prova em contrário todas as mulheres queriam foder com ele. por vezes eu duvidava e ocupava-me a fixar o nome das ruas onde passávamos. em casa havia bolachas amanteigadas e um espanta espíritos ao lado do único espelho existente.



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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

era ainda estranho para mim. não para os que ali viviam há muito ou sempre viveram. aborrecia-me acordar sem a alegria do dia anterior. incomodava-me a tranquilidade das pessoas. comecei a perceber quando a tristeza não se repetia. todas as manhãs a cidade era diferente. tudo sucumbia à madrugada. nada resistia ao nascer do dia. aos primeiros raios de luz nenhuma alegria ou tristeza do dia anterior permanecia. era esta justiça que me fazia perceber paulatinamente a tranquilidade dos meus vizinhos. que nem sequer eram sempre os mesmos. ali acordava-se com outra família. ninguém amava mais do que um dia. nada significava o que quer que fosse mais do que um dia. no dia seguinte os amigos eram outros. igualmente verdadeiros. os dias eram intensos. o carácter efémero das coisas ia perdendo importância à medida que eu ia percebendo que tudo era verdadeiro porque não havia razões para fraudes. não havia lugar para expectativas. não havia tempo para construir dramas nem para duvidar de amores eternos.





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domingo, 10 de outubro de 2010

naquela altura estava ainda a habituar-me à rua velha da nova cidade. a tentar ler todas as histórias que as paredes antigas me contavam todos os dias de manhã e ao fim da tarde. estava frio mas não desagradável. os cafés eram muito quentes e bonitos. as pessoas tinham um olhar meigo e um passo tranquilo.




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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

a Francisca que se sentava na esquina a ler trabalhava no bar à noite. o Cristovão frequentava o bar. a Francisca não conheceu o pai e a mãe desapareceu ainda miúda. o Cristovão fixava as mãos doces da Francisca e demorava a pedir ao balcão. a Francisca aguardava sempre com ansiedade a chegada do Cristovão e ficava impaciente nas noites em que ele não aparecia. namorava com o tipo estiloso que colocava os discos a tocar. trocava piadas com o Cristovão ao balcão e observava-o atentamente ao longo da noite. o Cristovão procurava o sorriso da Francisca entre as batidas e fazia questão de retribuir. quando se encontravam de meses a meses a Francisca nem sempre se vinha. ela nunca se alongava ao balcão e evitava servir o Cristovão. era a pessoa mais importante da sua vida. amava-o a ponto de o rejeitar. mantinha uma distância artificial que só quebrava quando o sentia demasiado afastado. amava-o tanto que não se permitia tê-lo para si temendo o risco imaginário de um dia o perder. o Cristovão amava a Francisca e ela sempre o soube. um dia o Cristovão pagou a conta e despediu-se da Francisca.




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domingo, 26 de setembro de 2010

e então quando se encontravam eram gays. o Chico apenas quando se encontrava com o Cristovão. o Cristovão há muito que não era gay senão com o Chico.




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sábado, 25 de setembro de 2010

quando se encontravam eram totalmente sinceros sem nunca falarem de si mesmos. não era propositado. os dois juntos não existiam mais do que aquilo que eram um para o outro naqueles momentos. quando se encontravam no mundo não cabia mais ninguém e as regras eram desnecessárias. a razão era a deles e os desejos independentes do resto da vida eram levados ao extremo. os dois separados não existiam um para o outro.




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terça-feira, 21 de setembro de 2010

o homem do cabelo encerado vendia móveis antigos e era particularmente bom a envelhecer a concorrência




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segunda-feira, 20 de setembro de 2010

atravessávamos a ponte e descansávamos na outra margem. no regresso ficávamos parados no meio da ponte a olhar para o rio. nunca nos passou pela cabeça que ele pudesse secar.




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domingo, 19 de setembro de 2010

no fim da tarde das sextas o Crispim esperava a Sara na estação de comboios. a Sara e o Crispim mantinham uma relação de conveniência. era conveniente para ela saber que alguém a esperava. era conveniente para ele ter alguém a quem esperar. o Crispim trabalhava num ginásio e gostava de conversar com as clientes. não raramente as clientes abriam-se à intimidade com o Crispim. havia qualquer coisa nele que não deixava as mulheres indiferentes. a Sara estava fora durante a semana e de vez em quando trocavam mensagens escritas. o Crispim já se havia habituado a ter clientes atraídas por ele e procurava nelas razões para não se sentir mais do que sexualmente excitado. encontrava sempre em cada uma motivos suficientes para nao correr o risco de ver a excitação converter-se em paixão. gostava de as sentir húmidas e de as ver chupar. pouco mais. um dia a estação de comboios fechou e a Sara mudou-se para cá por não precisar de ir para lá. nesse dia deixou de ser conveniente. nunca mais se falaram.




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sábado, 18 de setembro de 2010

numa esquina inventada por duas ruas não paralelas costumava sentar-se uma rapariga magra com um brinco no nariz e mãos doces. as ruas serviam-me de ligação ao mercado tradicional e os prédios sucediam-se rapidamente como a própria idade. a rapariga lia de pernas cruzadas e dificilmente perdia a concentração. levantando a cabeça no momento certo talvez esboçasse um sorriso ligeiro mas não era certeza.




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sexta-feira, 17 de setembro de 2010

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

de quando em vez cruzava-me com uma rapariga de sorriso tímido no elevador. tinha pestanas compridas e trazia sempre brincos grandes. usava um perfume quente mas não demasiado intenso. na curta viagem entre andares tentava decifrar-lhe a profissão. e sugeria a mim próprio nomes que lhe assentavam bem. tinha qualquer coisa de Mafalda ou Benedita. não tinha nada de Beatriz nem de Sofia. um dia ela fez-me uma pergunta.




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quarta-feira, 15 de setembro de 2010

quando aparecia a Márcia divertia-se a seduzir o Vasco. o Vasco era um tipo porreiro. um jornalista dedicado com pouco tempo para qualquer outra coisa. da sua vida constavam meia de dúzia de episódios com mulheres mais ou menos desinteressantes. usava óculos rectangulares e dormia com um candeeiro aceso. escrevia as notícias de economia mas era mais entendido em cinema e miniaturas de aviões. a Márcia viajava pelo mundo inteiro. mais para a américa latina. absorvia rapidamente o sotaque alheio e adorava mudanças radicais de visual. o Zico nunca percebeu a relação da Márcia com o Vasco o que bastava para o confundir demasiado. a Márcia tirava o Vasco do círculo fechado em que vivia e levava-o a bares com muita gente e música alta. bebiam e ela provocava-o nas pistas de dança. ao fim da noite nunca aceitava a boleia do Vasco que adormecia no carro até ao amanhecer altura em que voltava para casa mudo e cabisbaixo. nos períodos em que a Márcia estava fora o Vasco vivia focado no jornalismo. ia ao cinema três ou quatro vezes por semana e às sextas embebedava-se em casa. a Márcia não perdia o vício do sexo e fodia muito fora. não dava uma única foda em que não se lembrasse do homem Vasco.




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terça-feira, 14 de setembro de 2010

o filho da gerente do restaurante pequeno da baixa voava com frequência para Paris. era bem parecido educado e muito calmo. em Paris encontrava-se com uma jovem cantora de casino. cá era assediado por mulheres mais velhas quase sempre casadas. a jovem cantora tinha uma pele branca e seios pequenos que lhe davam um ar extremamente erótico. usava sempre as unhas pintadas de vermelho e uma boina descaída para o lado esquerdo. costumavam encontrar-se num clube de blues onde se reuniam músicos para beber e tocar de improviso. as mulheres casadas cansavam-no em noites longas de sexo interminável. a jovem francesa tocava-lhe na barba de mansinho e ficava horas a ouvi-lo falar dos seus projectos na área do turismo. amavam-se de tal maneira que nunca se envolveram mais do que um abraço.




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segunda-feira, 13 de setembro de 2010

sobretudo no verão frequentava à noite um pequeno restaurante na baixa. tinha capas de discos de vinil penduradas nas paredes de granito e os guardanapos eram pretos. a gerente virava-se de costas e olhava pelo vidro junto ao balcão. era uma mulher alta de cabelos curtos e olhos escuros. usava sempre saltos muito altos e um lenço no pescoço. teria pouco mais de quarenta anos e um filho quase adulto. saía tarde do restaurate com um tipo bem posto de cabelo encerado virado para trás que parava o carro caríssimo mesmo à porta do restaurante. eu ficava a acabar o vinho tinto depois de a ver sair.




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